O ano de 2025 marca os 150 anos do início da imigração italiana no Rio Grande do Sul – um processo que deixou marcas profundas na história e na cultura do estado. Na região da Quarta Colônia, quarto centro de colonização italiana do Rio Grande do Sul, esse legado se preserva em traços linguísticos, culturais e históricos que atravessam gerações, embora ainda enfrente os desafios do esquecimento.
Para resgatar esse patrimônio, um projeto de extensão da UFSM está promovendo uma série de ações junto à comunidade local, com foco na valorização das raízes e no enfrentamento ao esquecimento e aos preconceitos que marcaram parte dessa trajetória.

Coordenado pelo professor Marcos Daniel Zancan, do Colégio Técnico Industrial de Santa Maria (Ctism), o projeto “História, língua e cultura de imigração italiana na Quarta Colônia” envolve ações como oficinas, palestras, cursos de línguas e até publicações bilíngues. Formado em Engenharia Elétrica e com 24 anos de atuação na UFSM, Zancan trabalhou por anos na área administrativa e de gestão acadêmica. Após esse período, decidiu investir em um projeto que resgata as próprias raízes e dialoga com a sua história familiar.
“Eu sou filho de imigrantes, fruto do preconceito, da perseguição. Meus pais viveram isso. O sotaque que carrego, as expressões que uso, me causaram bullying, tanto em Ivorá, de onde eu vim, quanto na Universidade. O projeto tem como ideia ajustar a história e os paradigmas criados em torno dos imigrantes. Queremos reconstruir a história verdadeira para valorizar a identidade cultural das pessoas da Quarta Colônia”, afirma o professor.
A iniciativa busca desmistificar a história da imigração italiana, reconstruindo narrativas e valorizando o legado deixado pelos imigrantes, muitas vezes apagado ao longo do tempo por causa da perseguição, do preconceito e da imposição de uma identidade cultural única.
Entre a fome e o esquecimento: a trajetória dos imigrantes
Os primeiros italianos chegaram à região fugindo da miséria, da fome e da guerra. “A Itália estava recém-unificada. Houve uma imigração em massa, e o governo brasileiro não estava preparado para receber tanta gente. Não houve assistência”, explica o professor. A situação se agravou durante o Estado Novo, quando as políticas de nacionalização passaram a proibir não apenas o uso de línguas estrangeiras, mas também diversas expressões culturais dos povos imigrantes. “Era proibido rezar ou ir ao mercado falando em outra língua. Pessoas foram presas por isso”, relata.
Esse processo de repressão linguística e cultural gerou consequências duradouras. “Os pais pararam de ensinar a língua, de transmitir a cultura. Forçaram uma aculturação. A autoestima das comunidades foi sendo destruída. Começaram a repetir aquele mantra de que eram pessoas de segunda categoria. A gente quer desconstruir isso”, aponta.
Língua vêneta: uma identidade em reconstrução
Uma das principais frentes do projeto é a valorização da língua vêneta — uma das línguas minoritárias da Itália. Os imigrantes que vieram para a Quarta Colônia eram originários do norte da Itália, mais especificamente da região do Vêneto, e trouxeram consigo sua língua regional. Antes da unificação italiana, em 1861, o território da península itálica era formado por diversos reinos, cada um com sua própria língua regional. Com a unificação, a língua italiana – tal como conhecemos hoje – passou a ser baseada em variantes linguísticas da região central da Itália, especialmente da Toscana. Enquanto isso, outras línguas regionais, como o vêneto, foram progressivamente reprimidas ou invisibilizadas.
Reconhecida pela Unesco como idioma histórico da região de Vêneto, a língua vêneta é falada em diversas comunidades ao redor do mundo, como no Brasil, Argentina, México e Canadá — apesar de não ser oficial em nenhum país. “A língua vêneta não é um dialeto, é uma língua. Assim como não dá pra dizer que o espanhol é um português mal falado, também não dá pra dizer que a língua vêneta é um italiano mal falado. Na região de Vêneto, na Itália, se você chega falando italiano, é só mais um turista. Se chega falando a língua vêneta, te convidam para entrar em casa”, explica Zancan.
O projeto oferece cursos de língua vêneta e desenvolve diversas ações para valorizar as expressões culturais locais. Um dos principais destaques é o livro bilíngue “Ła beła połenta: Parché zeła tanto spesial?” (“A bela polenta: por que é tão especial?”), escrito, em português e língua vêneta, por Zancan e as professoras Rosemar de Fátima Vestena e Thais Scotti do Canto-Dorow, da Universidade Franciscana (UFN). O livro, inicialmente lançado como e-book, foi impresso com o auxílio da empresa Camnpal e está sendo distribuído em escolas da Quarta Colônia. Ele aborda a história da imigração italiana, a gastronomia, a cultura local e inclui até jogos digitais em língua vêneta.
Em setembro, a obra será lançada na região do Vêneto, na Itália, durante uma viagem que também marcará a participação do projeto no 12º Congresso Internacional de Investigação em Didática das Ciências, que ocorrerá em Valência, na Espanha, de 2 a 5 de setembro. No congresso, serão apresentados artigos desenvolvidos em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática da UFN.

Oficinas culturais e conexão internacional
O projeto também leva oficinas temáticas para escolas e comunidades da Quarta Colônia. No ano passado, em 5 de agosto, foram realizadas oficinas em Ivorá, e agora, no próximo dia 28 de abril, elas retornarão, desta vez nas escolas de Nova Palma. As oficinas abordam os seguintes temas:
- História, língua e cultura de imigração italiana na Quarta Colônia
- Segredos do milharal: da terra ao céu
- Pelas rotas do milho: da semente ao prato
- No ritmo da bela polenta (oficina musical)
Essas atividades, que têm como foco a valorização da cultura local, são realizadas em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática da UFN.
Além disso, o projeto planeja aproximar estudantes brasileiros e italianos por meio de uma proposta chamada Gemellaggio Scolastico. “Queremos conectar uma escola da região do Vêneto com uma escola daqui. Os alunos podem trocar cartas, fazer chamadas de vídeo. Isso é pertencimento. É reconhecer que a gente tem uma origem comum”, destaca o professor.
Quarta Colônia: muito além da paleontologia
Desde 2022, a Quarta Colônia é reconhecida como Geoparque Mundial da Unesco, principalmente por seu potencial paleontológico. Mas, para Zancan, é fundamental ir além. “A Quarta Colônia é muito mais do que a paleontologia. Temos um enorme potencial cultural, arquitetônico, religioso, gastronômico. Somos uma comunidade com forte descendência italiana e precisamos entender de onde viemos para projetar o futuro”, afirma.
O projeto está aberto à participação de professores, estudantes e demais interessados em contribuir com a valorização da identidade cultural da região. Para mais informações, é possível entrar em contato com o projeto pelo e-mail quartacolonia@ctism.ufsm.br ou acessar a página do projeto no Facebook.
Fonte: UFSM