
Artigo publicado na última terça-feira, dia 6, no Jorrnal Of Anatomy, periódico inglês que existe desde 1867, coroa trabalho de quase duas décadas de um grupo de pesquisadores brasileiros e ingleses, liderados pelo paleontólogo de Faxinal do Soturno Sergio Cabreira que conseguiu estabelecer que pequenos fósseis encontrados no município, no início dos anos 2000, seriam, de fato, os mamíferos mais antigos da Terra. Entre os demais co-autores do artigo estão o professor Cesar Leandro Schultz, da UFRGS, além de pesquisadores de diferentes instituições e áreas, como: Moya Meredith Smith (Odontologia) e Martha Richter (Biologia), paleontólogas do Museu de História Natural de Londres, e Marina Bento Soares (Biologia) da UFRJ, Rodrigo Carrilho (Biologia, da Unilasalle) e os pesquisadores independentes Henrique Puricelli Lora (Odontologia), Cristina Pakulsky (Biologia) e Lúcio Roberto da Silva (Biologia).
Os estudos foram realizados com as dentições de pequenos cinodontes, chamados Brasilodon quadrangularis, encontrados em rochas fossilíferas do período Triássico/Noriano, datadas como tendo aproximadamente 225 milhões de anos. Os pequenos brasilodontídeos tinham apenas 20 cm de comprimento total e pesariam pouco mais de 15 gramas. Eles se assemelhavam aos pequenos roedores atuais, mas até hoje eram descritos na literatura científica como tendo uma natureza biológica reptiliana. “Desde que foram encontrados os primeiros fósseis de cinodontes, na segunda metade do século XIX, estes pequenos fósseis eram descritos como animais ectotérmicos e ovíparos, isto é; seriam animais de sangue frio e colocariam ovos para sua reprodução. Nossa pesquisa demonstrou, através de análises de microscopia das mandíbulas e dos dentes, que estes pequenos animais já apresentavam difiodontia, isto é, apenas uma dentição permanente substituindo a dentição de leite”, explica Cabreira. Difiodontia está diretamente associada, nos mamíferos atuais, a características fisiológicas como endotermia, placentação e lactação. Ou seja, brasilodontídeos eram diminutos animais peludos endotérmicos (sangue quente) e produziriam ninhadas de filhotes nascidos vivos, os quais seriam então amamentados pelas suas mães. Cabreira acrescenta que “estas são as características básicas que hoje encontramos entre o maior grupo dos mamíferos atuais: os placentários. Este era um mistério que se mantinha oculto por mais de 150 anos, desde a descoberta dos primeiros cinodontes nos anos de 1830 a 1850”.
Os primeiros trabalhos histológicos com as dentições destes fósseis que estão na UFRGS iniciaram em março de 2004, quando os paleontólogos selecionaram algumas mandíbulas isoladas de Brasilodon, de apenas 2,0 cm de comprimento, para a preparação e confecção de lâminas histológicas e posterior estudo em diferentes microscópios. O trabalho dos pesquisadores tomou vários anos em busca de ferramentas teóricas que possibilitassem chegar às conclusões descritas no artigo. Com o uso de poderosos microscópios, foram produzidas milhares de fotografias de histologia para estudar os dentes, as características do esmalte e da dentina dos dentes de Brasilodon.
Cabreira explica que as principais descobertas ocorreram porque o esmalte e outros tecidos dentários mineralizados dos animais carregam consigo informações sobre as características básicas das condições metabólicas em que são formadas. Assim, foi possível diagnosticar quais dentes teriam iniciado sua formação durante a fase de desenvolvimento placentário de embrião, e quais os dentes teriam se formado após o nascimento dos animais. Pode-se afirmar, então, que, ao nascer, estes pequenos animais apresentavam uma dentição de leite, a qual era rapidamente substituída por uma dentição permanente, como ocorre entre todos os mamíferos placentários atuais, inclusive entre os seres humanos. Conforme Cabreira, estes mamíferos do Período Triássico eram animais noturnos que caçavam insetos e pequenos répteis e deveriam viver em pequenas tocas onde seus filhotes viviam até ficarem adultos.
Histologia dentária
O método de avaliação deste estudo usou conjuntos de três ou quatro mandíbulas de cinodontes para a elaboração de lâminas histológicas a serem estudadas em microscopia, que forneceram diagnoses seguras dos tecidos mineralizados dos dentes. Os pesquisadores incluíram pequenas mandíbulas filhotes e adultos dos fósseis de Brasilodon. Assim, os pesquisadores conseguiram estabelecer evidências claras do desenvolvimento das dentições dos dentes pós-caninos desde as fases de filhotes até os animais adultos das espécies estudadas. Segundo Cabreira, esta nova modalidade de estudo permitiu avaliar os níveis metabólicos em que os dentes foram formados e mineralizados. “Além disso, foi possível estabelecer com segurança o número de pré-molares decíduos (de leite) e a sequência de troca destes dentes por seus sucessores dentes da segunda dentição, enquanto a mandíbula dos fósseis se desenvolvia, desde a fase de embrião até a idade adulta”, acrescenta o pesquisador. Cabreira afirma que a histologia dentária é um método eficiente e seguro para a avaliação dos fósseis, e que este método descortina uma nova fase no estudo da evolução dos mamíferos: “agora, muitos profissionais da biologia poderão atuar neste segmento, uma vez que estas ferramentas práticas e teóricas estarão disponíveis para todos”, afirma.
A importância da descoberta
O estudo, ao mostrar que os mamíferos placentários são tão antigos quanto os primeiros dinossauros, traz importantes informações sobre o conservatismo e o continuísmo dos padrões genéticos, embriológicos e fisiológicos dos vertebrados ao longo do tempo. Conforme Cabreira, os resultados apontam que os mecanismos gênicos e certas estruturas biológicas reprodutivas, como a lactação e os cuidados maternos, mantiveram-se estáveis através de muitos milhões de anos de evolução. “Mais surpreendente, a descoberta aponta que certas características de algumas Ordens de mamíferos como os Marsupiais e os Monotremados teriam surgido como elementos reprodutivos secundários, através da evolução de ancestrais placentários”, acrescenta.
Outro elemento importante diz respeito à dentição difiodonte dos mamíferos, inclusive humanos, que agora fica claramente associada ao desenvolvimento do palato. Neste caso, os autores demostraram que os dentes molares permanentes, cuja origem era pouco conhecida, agora passam a ser reconhecidos como originados na mesma lâmina embriológica que dá origem ao conjunto dos dentes de leite. Anteriormente, estes molares permanentes eram tidos como pertencentes à dentição permanente, e que dá origem aos dentes incisivos, caninos e pré-molares. “Enfim, este inovador trabalho de biologia evolucionária pode trazer novas perspectivas para iluminar o cenário sobre a evolução e as dentições dos mamíferos”, afirma o pesquisador.

Texto e fotos: Ciro Cabreira | Divulgação