Joias costumam ser sinônimo de beleza e preciosidade, mas se tornam ainda mais valiosas quando carregam um significado. Foi isso que a designer de joias Ana Luiza Seeger Guerra buscou trazer em sua coleção inspirada na Quarta Colônia de Imigração Italiana e suas igrejas: criar peças significativas, que remetam ao povo responsável por colonizar a região a partir do século 19. Através de características iconográficas presentes na arquitetura religiosa de nove igrejas locais, Ana representa a fé católica, um elemento intrínseco à cultura italiana, que perpassa gerações.
O projeto faz parte de uma dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Patrimônio Cultural da UFSM, orientada pelo professor Flavi Ferreira Lisboa Filho. Para o trabalho, foram selecionadas as igrejas matrizes de Ivorá, Dona Francisca, Pinhal Grande, Silveira Martins, Faxinal do Soturno, Nova Palma, São João do Polêsine, Vale Vêneto e Arroio Grande (distrito de Santa Maria). O colar inspirado na Igreja Matriz de Vale Vêneto, distrito de São João do Polêsine, é a única joia produzida até o momento.
A equipe da Agência de Notícias pediu que Ana destacasse algumas das peças que fazem parte da coleção e explicasse as referências por trás das criações. As joias escolhidas são as seguintes
Nova Palma – A Igreja Matriz de Nova Palma, dedicada à Santíssima Trindade, foi transformada em um anel. Inicialmente, Ana havia optado por representar as formas, bastante características da fachada e do interior da igreja, em brincos (que chegaram a ser desenhados e estão disponíveis no apêndice do trabalho), porém, conforme a união dos elementos em desenho foi tomando forma, ela percebeu que funcionariam mais harmonicamente como um anel.
A peça faz referência ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, que formam a Trindade, a qual a matriz homenageia. Na joia, Pai e Filho são representados pelas pedras “água-marinha”, dispostas nas laterais, em tom de azul. A escolha das gemas azuladas fazem referência à pintura do teto do templo, em que as duas figuras aparecem em vestimentas azuis. Já o Espírito Santo, que ocupa a posição central, é representado pela pedra citrino. Naturalmente amarelada, a tonalidade da pedra faz referência à pomba presente na pintura, o principal símbolo do Espírito Santo.
Silveira Martins – Já a Matriz de Silveira Martins, dedicada a Santo Antônio de Pádua, considerado um “santo casamenteiro”, foi convertida em um colar. A característica mais marcante da fachada, escolhida como principal elemento de representação da igreja, é a torre cilíndrica de estilo bizantino. Para evidenciar a forma, Ana escolheu um pingente estilo berloque, que une duas partes iguais soldadas, e permite o movimento giratório.
Outra marca replicada em várias partes do templo são os detalhes florais, com destaque para a flor de açucena, ou lírio, segurada pela estátua de Santo Antônio na fachada da matriz, assim como nas portas, no chão e nos retábulos laterais. A flor é representada no pingente em relevo, disposto acima de um cravejado de pedras, que acompanha toda a circunferência do berloque. Na ideia inicial, as pedras de esmeraldas seriam utilizadas como representação dos ramos das açucenas e diamantes seriam usados para representar o branco das pétalas. Porém, na versão final, apenas as esmeraldas permaneceram para simbolizar a planta.
Vale Vêneto – Outro destaque é a Matriz de Vale Vêneto, dedicada a Corpus Christi, que foi representada por um colar. A fachada do templo possui formas geométricas acentuadas. O teto de madeira também apresenta formas em relevo, que contornam a imagem da Eucaristia e de um cálice ao centro. A Eucaristia – que remete ao sacrifício do corpo e sangue de Jesus, representados na repartição do pão e do vinho na Última Ceia – é replicada em diversas partes da igreja, como nos vitrais, no altar e no sacrário.
Além disso, o retábulo central abriga uma imagem do Sagrado Coração de Jesus em seu nicho principal, que remete ao significado da igreja. Nela, Cristo aparece em vestes vermelhas, uma auréola sobre a cabeça e uma das mãos indicando o coração. Dessa forma, a junção dessas referências deu origem a um pingente triangular, revestido por traços que fazem alusão à Eucaristia e dão a ideia da auréola sobre a cabeça de Cristo. O rubi vermelho em formato cabochão, centralizado na joia, remete ao sangue de Cristo, também como parte da Eucaristia.
Desenhos e criatividade
Apesar da liberdade de usar a criatividade nos desenhos, Ana não quis se distanciar muito da literalidade na representação dos elementos observados nas igrejas. Segundo ela, como uma boa designer, seu processo criativo sempre é guiado por referências. A partir delas, começa a desenvolver desenhos esquemáticos, que ajudam a pensar nas formas e a entender como vai transformá-las em joias. O papel-manteiga é um aliado importante nesse processo para facilitar o refinamento, pois, à medida que os desenhos vão sendo replicados, vão tomando uma forma mais consistente.
Depois de rascunhados no papel, eles são projetados no software Rhinoceros 3D, um programa de modelagem tridimensional, que permite uma prototipagem do produto nas dimensões reais. Mesmo não sendo exclusivo para o design de joias, Ana opta por usá-lo, pois ele oferece uma projeção precisa das escalas milimétricas utilizadas nas joias, diferentemente de outros softwares próprios para isso. É nessa ferramenta que o design é finalizado, já com a simulação dos materiais que serão usados para a confecção, como as pedras – ou gemas, como são chamadas na joalheria – e a disposição e encaixe desses materiais na peça.
Produção do colar de Vale Vêneto
O colar da Matriz de Vale Vêneto, produzido em ouro 18 quilates, passou por um longo processo para ganhar forma. O procedimento, chamado de prototipagem 3D, foi escolhido para produzir a peça pela sua complexidade e riqueza de detalhes, que inviabilizaria a produção completamente à mão.
A primeira etapa foi a impressão 3D, que serve para dar a dimensão do volume e testar a peça. Depois, essa prototipagem é revestida de borracha, formando um molde, que recebe a injeção da cera e origina um novo molde. Esse novo molde de cera é limpo, revisado, e depois recebe a cravação das pedras. Seguido da conclusão da cravação, ele é adicionado a uma espécie de suporte, formando uma “árvore”, como é conhecido o processo. A árvore é colocada em um tubo, revestida por gesso e levada ao forno em uma temperatura por volta de 700 graus Celsius.
Após 12 horas no forno, esse tubo de gesso formado é retirado. Dentro daquele suporte que originou a árvore, é injetado o material fundido, escolhido para a joia. No caso do colar de Vale Vêneto: o ouro. Depois do resfriamento dos tubos, é esperado o processo de cura do gesso, para depois ser quebrado e a joia, já formada, ser retirada e levada para limpeza e acabamentos feitos pelo ourives.
Objetivo e divulgação
Apesar do colar de Vale Vêneto ter sido a única joia produzida até o momento, já que a fabricação é sob demanda, todas as peças estão disponíveis para encomenda na loja de Ana, Aphelia Design de joias. Com o intuito de mostrar as peças com mais detalhe e explicar os simbolismos por trás das escolhas, a designer tem publicado uma série de vídeos em seu perfil no Instagram, que ajudam a cumprir o objetivo de exaltar a região. “A pretensão dessa coleção é divulgar mais a Quarta Colônia e também explicar às pessoas como eu fiz o trabalho, que foi, realmente, algo mais elaborado. Não apenas peguei o formato da lateral, eu fiz a joia, eu pesquisei, eu pensei que seria mais significativo”, relata.
Seleção das igrejas
Para o trabalho, foram selecionadas nove igrejas sob um mesmo critério: terem sido fundadas por imigrantes italianos. Por isso, a matriz de Arroio Grande, um distrito de Santa Maria, também foi incluída, apesar de não fazer geograficamente parte da Quarta Colônia. Já outras cidades que foram agregadas posteriormente à região, como Restinga Seca e Agudo, não foram integradas no projeto por terem colonização alemã ou por suas paróquias não terem sido idealizadas por italianos. Essa seleção foi importante para manter a essência do projeto de trazer à tona a identidade do povo italiano através de suas construções religiosas.
Significados
O processo de captar a essência das igrejas fez com que Ana aprimorasse não apenas seu conhecimento, mas também seu olhar sobre cada uma delas. O aprofundamento no estudo da iconografia religiosa teve um papel fundamental na compreensão de que nada está ali por acaso. “Isso foi o que me instigou também a trabalhar, porque uma coisa que eu sempre gostei de entender foram os porquês, entender os simbolismos, os significados. E busquei representar isso nas joias, para realmente ter a identidade de cada igreja. Minha pretensão era que o pessoal olhasse para essa joia e soubesse de que igreja estamos falando”, conta a designer.
Para isso, um dos principais elementos explorados nas joias foram as fachadas, por serem marcantes e gerarem o primeiro impacto visual. A partir disso, Ana buscou encontrar nestas fachadas outros componentes que remetessem ao padroeiro, seja nas cores, na porta de entrada, na quantidade de torres, no formato das colunas, nos relevos ou na disposição de cada um destes itens, que para visitantes podem parecer detalhes puramente estéticos, mas são escolhas fundamentadas no significado das igrejas.
Novos olhares
A busca pelos elementos característicos, que chamassem a atenção e que poderiam ser facilmente identificados, também envolveu visitas a cada uma das matrizes. Mesmo com a dificuldade de acessar o interior de algumas delas, devido ao horário de funcionamento, Ana desbravou os arredores da parte externa de todas. Para ela, esse movimento foi também uma redescoberta.
“Consegui ter um olhar diferente, porque às vezes estamos acostumados com aquela igreja e não prestamos atenção que ela tem um estilo, seja mais barroco, ou mais moderno, sabe? Então, desenhar joias com base nessas igrejas me fez ter uma outra visão delas, apesar de ter visto, de ter ouvido sobre várias delas durante a vida, nunca tinha parado para pensar nos detalhes.”
Contextos históricos
O desvendar das escolhas de formas, relevos, cores e acabamentos contam tanto a história da igreja e do que ela representa, quanto de quem se dedicou a construí-la. Foi com o olhar atento aos detalhes também do contexto a qual cada igreja pertence que Ana descobriu, em uma plaquinha discreta na frente da Matriz de Vale Vêneto, uma trágica história que faz parte da constituição do local. Um dos homens que trabalhavam construindo o telhado, nativo dali, caiu e faleceu durante a obra. A homenagem conta um fragmento triste da história de apenas uma das pessoas que, com suas próprias mãos, ajudou a construir não só uma estrutura paroquial, mas também uma parte histórica da região.
Inspiração
Ao ingressar no mestrado profissional de Patrimônio Cultural, Ana já sabia que seu projeto envolveria duas marcas importantes em sua vida: sua paixão pelo design de joias e sua origem. Nascida em Silveira Martins e criada em uma família de descendentes de imigrantes italianos, a ideia de representar sua própria cultura veio naturalmente.
Já o design de joias surgiu em seu caminho durante a graduação em Desenho Industrial na UFSM. Sem muitas expectativas para a disciplina de joalheria, parte do currículo do curso, Ana foi surpreendida pela satisfação ao desenvolver os projetos da matéria e pela avaliação positiva que recebeu de diversos professores em uma amostra de trabalhos no final do semestre. A partir disso, montou em casa uma bancada de ourives – mesa própria para a confecção de joias – e passou a trabalhar na área.
Conforme o crescimento da demanda, Ana teve que escolher entre o desenho e a produção na bancada. Ao priorizar sua formação, hoje se dedica a desenhar as peças de sua loja, Aphelia. Porém, sem deixar totalmente de lado sua mesa, uma velha companheira cheia de marcas de uso inevitáveis do instrumento de trabalho de um ourives, a designer dá o acabamento final a todas as peças de sua marca.
Mudanças de rumo
Mesmo com a certeza dos protagonistas de seu projeto, Ana teve que mudar um pouco os planos. Sua ideia ao entrar na pós-graduação, no início de 2020, era entrevistar descendentes de imigrantes e criar as joias a partir de objetos trazidos da Itália, herdados pelas famílias. Porém, a pandemia de Covid-19 inviabilizou a iniciativa e obrigou a designer a pensar em uma nova estratégia. Em meio a pesquisas, ela se deparou com a área da iconografia religiosa, bastante usada em estudos sobre a Quarta Colônia.
Ao compartilhar o resultado das buscas com o orientador, o professor Flavi sugeriu as igrejas da Quarta Colônia como base para a criação das joias. Foi assim que uma nova marca da vida de Ana se uniu à equação, pois, além de juntar o design de joias e sua origem, Ana pôde acrescentar uma nova camada de identificação ao projeto: sua religião. Parte de uma família que sempre expressou sua fé católica, ela teve contato com as igrejas da região durante toda a vida e acredita que sua crença despertou uma admiração pela beleza dos templos e a inspirou.
Importância da UFSM
A produção científica realizada na UFSM teve um papel importante para que a dissertação de Ana se concretizasse. Através das pesquisas sobre diferentes aspectos da Quarta Colônia, que compõem o acervo da instituição, Ana pôde aprofundar ainda mais seu conhecimento. “A UFSM me trouxe esse olhar mais histórico, uma consciência histórica maior sobre o lugar onde eu cresci. Para mim, o que mais marcou foi essa parte histórica das igrejas, do catolicismo e todo esse conhecimento prévio de trabalhos que tinham sido feitos antes de mim, tanto por alunos quanto por professores”, analisa a designer.
Responsável por uma bibliografia recheada de pesquisas sobre a Quarta Colônia, a professora do Mestrado em Patrimônio Cultural Maria Medianeira Padoin foi uma das grandes inspirações para a fundamentação teórica do projeto. Além dela, a troca com o orientador, o professor Flavi, também trouxe muita bagagem, já que além de ter orientado diversos trabalhos de joalheria, sua identificação com a área vem de família, pois sua mãe, Maria da Graça Portela Lisboa, também é designer de joias.
Texto: Júlia Maciel Weber, estudante de Jornalismo e bolsista da Agência de Notícias
Fotos: Ana Alicia Flores, acadêmica de Desenho Industrial e bolsista
Artes Gráficas: Daniel de Carli
Edição: Lucas Casali