Se estivesse vivo, o restinguense Iberê Camargo completaria 104 anos neste domingo, dia 18
No trabalho de Iberê, os embates formais nunca estiveram desvinculados de um lastro existencial. Por isso não seria exagero afirmar que a condição de filho de ferroviários moldou uma personalidade em processo. “Ainda sou um homem”. Dois princípios projeta uma perspectiva ativa “Entendo que a vida é uma caminhada”. O segundo reporta à metáfora da viagem: “Antes de iniciar a viagem consulto minha bússola interior e traço o rumo. Mas quando estou no mar grosso, sempre sopra um vento forte que me desvia da rota preestabelecida e me leva a descobrir um novo quadro”.
Essas reflexões, enraizadas na gênese e nos desdobramentos de sua obra, materializam-se na presença dos símbolos de passagem: trens, riachos, ruelas, carreteis, ciclistas.
Subordinado a essa percepção tendo em mente dois períodos bastante distintos da trajetória de Iberê. O primeiro, de 1928 a 1980, sugere um tempo de formação, anos de aprendizagem e fuga progressiva do ambiente da província: da Restinga Sêca a Porto Alegre, de Porto Alegre ao Rio de Janeiro, do Brasil à Europa. Os deslocamentos do pintor faziam parte de um movimento mais amplo, no qual a história do indivíduo se revela em perfeita sintonia com as etapas do amadurecimento de seu trabalho plástico: do regional ao universal, da figura à abstração.
A segunda etapa de sua trajetória tem início com o controvertido episódio, ocorrido em 5 de dezembro de 1980 e que resultou na morte do engenheiro projetista Sérgio Alexandre Esteves Areal.
As imbricadas relações entre a vida e a obra adquirem uma densidade difícil de ser avaliada. Um fato de tal envergadura não pode continuar sendo ignorado pela crítica, mas é fundamental evitar juízos desinformados que desconsiderem ou sobreponham ao percurso do artista. Na vida de qualquer pessoa, ele representaria um divisor de águas, e assim foi para Iberê que, em 1982, decidiu retornar para Porto Alegre.
Dessa perspectiva é que devemos interpretar a convergência e o entrelaçamento de diferentes movimentos de retorno: a Porto Alegre, à figura e ao pátio da infância. Todos reforçam a ideia de uma virada: um dobrar-se sobre si mesmo. Um dos traços básicos dessa mudança emerge de uma simples comparação entre as telas de 1960 – 70 e as do início da década de 1980. O impacto dos acontecimentos sobre o espírito do pintor verifica-se no confronto de termos utilizados em telas como Estrutura (1961), Núcleo (1965), Vórtice (1973) e Desdobramento (1978), que serão substituídos por expressões da esfera da subjetividade como Reminiscência I (1980), Lembranças (1980), Espelho Negro (1984), Grito (1984), Fantasmagoria (1986). Salta aos olhos como questões espaciais foram absorvidas por tensões de ordem temporal, como formas plásticas acabaram sideradas pela expressão.
O corpo a corpo com a morte trouxe para essa pintura uma atmosfera espectral: é outono no Parque da Redenção. Até mesmo as paisagens da infância se revestem de uma luminosidade terminal que tomba sobre o Crepúsculo da Boca do Monte(1991) e o Crepúsculo da Restinga Sêca (1993). Em outras palavras, os retornos tiveram um caráter de expansão rumo às regiões sombrias do sujeito, significaram ampliação do seu horizonte estético que, agora, aponta para um *télosético.
A radicalidade dessa viragem está potencializada nos autorretratos e nos inúmeros retratos realizados. Se, observa desde seus primeiros trabalhos, tanto nas paisagens naturais – Jaguari (1941) e O Riacho (1942), quanto nas urbanas Lapa (1947) e Paisagem de Santa Teresa (1956), a pintura de Iberê Camargo nunca havia se concentrado sobre a figura humana, o que agora se convencionou a chamar de volta à figuração, na realidade, demonstra uma síntese: integração da figura humana à paisagem e aos objetos como Os Carretéis da memória deslizam rumo ao passado, metamorfoseados em rodas de bicicletas que, transformadas em engrenagens pistonadas de vagões, procuram os engates do tempo, formado por um imenso e estranho comboio de vozes. Nesse processo de transfiguração desenha-se um traçado similar a um ramal ferroviário, onde há entroncamentos e passagens de nível entre ficção e memória.
Esse texto não explica a pintura de Iberê. Mas, sem dúvida, fornece elementos que nos ajudam a compreendê-la e nos permite armar uma ampla rede de correspondências e analogias.
É possível dizer que evocam diversas facetas do seu longo aprendizado de pintor enfatizando sempre o processo, Iberê demonstra como as viagens visavam a uma progressiva conquista técnica que seria a grande responsável pela constante renovação de sua obra. A maior lição brota do contínuo esforço, do olhar mesclado, entre humildade e rebeldia, que lhe permitiu extrair de cada professor, seja ele o Casmurro Lobe ou modernista Lhote, a confirmação de suas intuições mais fundas. Essa fidelidade está entranhada na ideia de amizade. Mestres passam à condição de companheiros de ofício e, na linguagem muda dos pintores.
Diante da necessidade de dominar o idioma italiano, Iberê escreve seus primeiros textos em outra língua. O escritor torna-se um duplo do pintor. Duplo que passará a ter vida própria e publicará, trinta anos depois, um livro de contos: No andar do tempo*.
No âmbito da cultura, a experiência literária de Iberê pode e deve ser compreendia como uma manifestação tardia de conquistas modernistas. Provavelmente, foi um dos últimos a se beneficiar do intenso debate e da constante troca de ideias que aproximavam diferentes áreas da cultura. Em Porto Alegre, entre seus interlocutores figuravam os romancistas Érico Veríssimo e Vianna Moog, o crítico literário Moysés Velhinho e os poetas Mário Quintana e Armindo Trevisan. No período que viveu no Rio de Janeiro, costumava frequentar o Vermelhinho, onde começou a ampliar a roda de amigos, entre eles, o crítico gaúcho Augusto Meyer, os romancistas Adonias Filho e Marques Rebelo e os poetas Manuel Bandeira e Carlos Drummond.
Verdade seja dita, Iberê buscou dar continuidade à sociabilidade modernista. Além de se tornar um dos fundadores do curso de gravura do Instituto Nacional de Belas Artes, do Rio de Janeiro, como professor de gravura formou Anna Letycia, Vera Mindin e Eduardo Sued; como pintor, teve entre seus alunos Regina Silveira, Carlos Zilio e Carlos Vergara. O individualismo que virou marca de fábrica do artista nunca o impediu de militar contra o alto custo de importação de tintas e promover o famoso Salão Preto e Branco (1954), nem de repassar por um manual, A gravura *, os conhecimentos técnicos acumulados nessa atividade. Com isso, quero dizer que o interesse em torno de falar, relembrar e trazer trajetórias de Iberê não advém de sua alta qualidade artística, mas também está vinculado ao seu esforço por um progressivo adensamento da nossa vida cultural. Como temos visto, a depurada relação entre aprendizado e maestria é um dos eixos de sua concepção artística. O tempo da criação é sempre precedido pelo estágio do domínio da técnica.
Iberê não queria morrer e se estivesse vivo estaria completando 104 anos no dia 18 desse mês de novembro, pintar era uma forma de adiar sua morte e com certeza permanece vivo na nossa memória e em suas obras. Parabéns filho ilustre, o homem a caminho dessa terra chamada Restinga Sêca.
Quando eu estiver deitado na planície, indiferente às cores e às formas, tu deves te lembrar de mim. Aí, onde a planície ondula, a terra é mais fértil. Abre com a concha da tua mão uma pequenina cova e esconde nela a semente de uma árvore. Eu quero nascer nesta árvore, quero subir com os seus galhos até o beijo da luz. Depois, nos dias abrasados, tu virás procurar a sua sombra, que será fresca para ti. Então no murmúrio das folhas eu te direi o que meu pobre coração de homem não soube dizer.IBERÊ CAMARGO
Thais Danzmann Chaves
Pedagoga, Produtora e Gestora Cultural – mestranda em Educação
*télos/’tɛlɔs/substantivo masculino – Filosofia
1.ponto ou estado de caráter atrativo ou concludente para o qual se move uma realidade; finalidade, objetivo, alvo, destino.
2.fase final, derradeira; a última parte, o remate.
*No andar do tempo. Porto Alegre: L&PM, 1988, a ser publicado por esta editora em 2010
*A gravura. Porto Alegre: Sagra-DC Luzzato, 1992.
Referência e fonte de pesquisa: Iberê Camargo Gaveto dos Guardados – Augosto Massi